Por Ariane Ferreira - Há exatos 20 anos, em 08 de junho de 1997, um rapaz magricelo, cabeludo e de sorriso largo mudava a história da sua vida, de sua família e principalmente do tênis e o esporte brasileiro.
Hoje, o Tênis News, reflexo de uma geração de “guguistas”, relembra a histórica campanha do menino de 20 anos, que sem muito a perder e tudo a conquistar, encantou o mundo com seu tênis, garra, sorriso, brasilidade e história de vida e de esperança.
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Gustavo Kuerten é “um brasileiro” nato apesar do sobrenome alemão, como destaca no título de sua biografia. Além disso, sua vitória na 66º edição de Roland Garros é o melhor conto para explicar o ‘ser brasileiro’.
Em sua segunda participação no Aberto da França, Guga tinhas poucas expectativas, mesmo como 66º do mundo, desejava ao menos uma vitória. Após semanas de maus resultados na Europa na temporada de saibro, ele voltou ao Brasil, conquistou o título do Challenger de Curitiba e chegou motivado à Paris.
Ali, hospedou-se no modesto hotel duas estrelas Montblanc, acompanhado de seu segundo pai e treinador Larri Passos, e encontrou uma chave difícil.
Nos dias de preparação, Guga arrancou aplausos dos duplistas Daniel Nestor e Donald Johson, após uma sequência incrível sem erros com Larri em um treino. Irritou o 10º, Marcelo Rios em outro treino e no terceiro dia em Paris dividiu o treino com o então melhor da temporada de saibro, Alex Corretja, que como jogo sólido e sem erros do Manézinho profetizou em tom de brincadeira: “Que isso, cara? O que você tá jogando? Deste jeito vai ganhar o torneio.”
Foi mais que um elogio para o filho de dona Alice Kuerten e logo veio a estreia contra ex-top 30 e então 73º, o tcheco Slava Dosedel, que o havia vencido em Indian Wells e Monte Carlo naquele ano. Em ritmo de treino, o brasileiro aplicou pneu e com cerca de 100 testemunhas o superou após 1h35, vencendo sua segunda partida em um Grand Slam, a primeira em Paris.
Na segunda rodada, uma parada mais complicada, o sueco Jonas Bjorkman, 23º, que o o eterno número 1 do Brasil chama de “incógnita” em sua biografia apesar do ranking. O sueco saiu perdendo, viu Guga vacilar, chegou a esboçar uma reação, mas caiu após 2h37 e quatro sets de muita luta. Na rodada seguinte, já estando “nos céus”, como definiu, o brasileiro de nome alemão e que confundia até mesmo os jornalistas compatriotas por ser um total desconhecido, tem uma pedreira de nome Thomas Muster.
O austríaco, então quinto da ATP, tinha sido número 1 em 1996, e campeão em Roland Garros em 1995. Muito mais experiente, Muster chegava para o duelo contra Guga com 44 títulos profissionais conquistados e a pecha de ser o terceiro top 10 que o 'Cavalo' - apelido dado pelo treinador - enfrentaria na carreira. Até ali, Guga acumulava uma derrota para o russo Yevgeny Kafelnikov, então sexto, em Stuttgart 1996 e uma vitória sobre o sul-africano Wayne Ferreira, então 10º, em Indian Wells 1997.
Jogando na Quadra 1 do complexo, intitulada no imaginário do circuito de ‘O Cemitério dos Campeões’, Guga perdeu o primeiro set no tiebreak, mas agarrou-se à superstição, lutou, venceu os dois seguinte e viu-se obrigado a disputar o quinto set, no qual saiu com 3/0 abaixo e ficou frustrado.
Em seu livro, o Manézinho da Ilha conta com detalhes o diálogo de frustração que teve ao ir para o banco no intervalo e o “esporro” que levou diretamente das arquibancadas do irmão mais velho, Rafael: “Que história é essa? Como assim não dá? Olha onde tu tá. Já viemos até aqui; se liga, Guga. Tu não pode desistir. Para com isso de ‘já era’, entra lá e faz o que tu sabe”.
O esporro, era na verdade um incentivo e uma ordem. De maneira inesperada, Guga igualou 3/3, voltou a quebrar no nono game, não deu “espaço para bobeira” e após 3h08 de partida avançou.
Nas oitavas de final outra carne de pescoço, o ucraniano Andrei Medvedev, 20º. O placo? A lendária e lenta Suzane Lenglen, pela primeira vez na carreira do brasileiro. Apelidado de ‘O Urso’, Medvedev era conhecido por “trucidar” adversários, na descrição feita pelo brasileiro. Um jogo duro, que foi paralisado por falta de luz natural no 2/2 do quinto set.
Guga, que não dormiu muito aquela noite, voltou cheio de gás, abriu 4/2, mas viu o ucraniano fazer 4/4, entrou em apuros com 0-40 e contou com “a mão” de seu falecido pai, como conta, para sair daquele buraco com pancadas “sem rumo” e quebrar o rival no décimo segundo game com a ajuda de Larri Passos, que intuiu os saques dele na direita do brasileiro.
“Um monstro de filme se materializava na minha frente querendo acabar com a minha festa”, é assim que Guga define na primeira página de sua biografia seu adversário de quartas de final, o russo Yevgeny Kafelnikov. Não à toa, é com esta partida que abre sua história editada em livro.
Kefelnikov era o número três do mundo e o atual campeão do torneio em simples e duplas. Aquele “monstro”, que viria se tornar número 1 do mundo dois anos mais tarde, estava há dois anos e cinco meses dentro do top 10, tinha 11 títulos profissionais de simples, apenas 23 anos e botava bastante medo no Manézinho da Ilha.
Com esta memória, Guga o descreve: “Tinha características típicas de um espião da Guerra Fria: calculista, mecânico, implacável, uma pedreira.(...) Talentoso e versátil (...) O estilo do russo não era muito diferente do meu (...) O problema é que ele era melhor do que eu em tudo!”
Guga sofreu a expectativa de enfrentar o russo por dois dias, nos quais, como conta:”ficou desnorteado”. Na mais importante partida de sua carreira, até então, tinha apoio da torcida local com o grito de incentivo: “Allez, Gugá!” e uma tática arriscada. Esta foi a primeira vez de Guga na principal quadra do complexo de Roland Garros, a Philippe Chatrier.
Como esperado, a zebra e o dono da situação protagonizaram uma verdadeira batalha. Cinco sets, 2h30 de duração e mais uma virada heroica com direito a pneu.
“A Batalha dos Sobreviventes” foi a semifinal. O brasileiro era pela primeira vez favorito e encararia o belga Filip Dewulf, então 122º, outra zebra, que vinha de vitórias consistentes contra nomes como Corretja, o sueco Magnus Norman e Fernando Meligeni. Melhor para o brasileiro em 2h14 e quatro sets.
A grande final foi contra o especialista do piso e bicampeão do torneio (1993 e 1994), o espanhol Sergi Bruguera, 19º. Com a mãe (Alice) e a avó (oma - Olga Schlösser) nas arquibancadas pelo segundo jogo em Paris, Guga esteve iluminado e fez seu segundo jogo mais curto da chave, com vitória em três sets e 1h50 de jogo.